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Uma caminhada até o fim do mundo

Caminhar 800 quilômetros em um mês. Lidar com bolhas, várias bolhas nos pés e nas mãos. Andar sob o sol e o vento. Sozinho, na maior parte do tempo. O que leva 300 mil pessoas, por ano, a se submeter a essa jornada? Para essa pergunta, ouviremos 300 mil respostas diferentes. Superação, autoconhecimento, aventura são palavras que costumam se fazer presentes quando se fala no Caminho de Santiago, a rota peregrina mais conhecida da Europa cuja chegada é na cidade espanhola de Santiago de Compostela. Há, porém, outras palavras que percorrem essa viagem: diversão, vinho, mesa farta, solidariedade, amizade. Hoje, o jornalista Giovanni Faria embarca para a sua terceira caminhada. Dessa vez, sua “chegada” será 100 quilômetros além de Compostela, na cidade de Finisterre que, durante séculos, antes do descobrimento das Américas, muitos acreditavam que era o fim do mundo.

Aos 57 anos, ele se preparou para a viagem caminhando por Niterói (RJ), onde mora. Diariamente, percorreu 30 quilômetros ao longo da orla (Mac – Fortaleza de Santa Cruz – Mac), das 6h às 12h. Em 50 dias, emagreceu 10 quilos.

Primeira dica: preparação física é fundamental para enfrentar o Caminho de Santiago.

Foi após escapar por um triz de um infarto que Giovanni entendeu que precisava mudar o rumo de sua vida. Quase que de imediato,

lembrou-se de uma das maiores emoções que sentira, justamente, na Praça do Obradoiro, local onde oficialmente encerra a caminhada de um peregrino. Ali fica a Catedral de Santiago de Compostela, que celebra missas diárias para os que chegam. Em 2014, ele foi até lá esperar pelo irmão um ano mais novo, que já faz o caminho há dez anos.

“Enquanto esperava meu irmão, fiquei observando as pessoas chegando. Fiquei extasiado. Chegavam exaustas, maltrapilhas, mas muito emocionadas. O clima na praça é muito especial. Eu me emocionei muito. Quando percebi meu irmão chegando, a primeira coisa que notei é que ele estava muito magro. Meu irmão sempre foi um bicho do mato, muito tímido. E a cada minuto, ele encontrava uma pessoa diferente, se abraçavam e choravam juntos. Fiquei me perguntando o que tinha nesse caminho que tinha feito essa transformação no meu irmão”, conta Giovanni, que é casado e tem dois filhos.

O quase infarto foi fruto de uma vida profissional bem-sucedida, porém, embebida no máximo do estresse. Foram 33 anos nas Organizações Globo, quase sempre em cargos de chefia. Em 2012, assumiu a direção da Rádio Globo. Saiu em 2015, quando o coração o fez ver que sua dedicação ao trabalho lhe rendeu frutos materiais, mas quase não permitiu que acompanhasse o crescimento dos filhos.

Decidiu fazer o Caminho, sozinho. Descobriu, então, que são vários os caminhos que levam para Compostela, partindo de diferentes pontos da Europa. Um deles, porém, o Caminho Francês, é o mais popular e costuma ser confundido com “O” Caminho de Santiago. Foi esse que Giovanni escolheu para sua estreia como peregrino. Há quem o percorra também de bicicleta e a cavalo.

No caminho francês, o marco inicial é a cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port, na divisa com a Espanha. Até Compostela, o viajante passará por 150 cidades, algumas, na verdade, apenas uma vila. Mais do que religiosa, essa é uma rota cultural que remete à civilização medieval espanhola e ainda guarda marcas do domínio do Império Romano na região, como por exemplo, 37 pontes romanas.

Antes de dar o primeiro passo na estrada, é preciso obter a concha, o objeto-símbolo que transforma o turista em peregrino e permite o acesso aos albergues gratuitos existentes em toda a rota. Esse trabalho “burocrático” é feito por voluntários. Cada um deles coloca uma plaquinha na mesa, indicando o idioma que fala para melhor atender o viajante. É nesse mundo de delicadezas, colaborações e solidariedade que o peregrino embarca.

Primeira lição: Fazer o Caminho é aprender a desapegar.

“Andamos em média 30 quilômetros por dia. No meu primeiro dia, foram 28 quilômetros subindo uma montanha. Quando cheguei no primeiro albergue me deparei com a sala do desapego, onde as pessoas deixam seus pertences, literalmente pelo caminho, para aliviar o peso da mochila. O objeto que mais tinha era secador de cabelo, uns 40, de tudo quanto era tipo e tamanho. Eu deixei roupas. Fiquei somente com duas mudas. Só a mochila pesa 1 quilo. Eu levei saco de dormir e foi importante. Se um peregrino chega em um albergue e está lotado, a cidade abre sua igreja, escola ou posto de saúde para ele dormir. Eu dormi uma vez em um banco de igreja”, conta Giovanni.

Segunda dica: Usar botas é melhor do que tênis.

Isso porque há muitas pedras soltas pelo caminho. A bota protege o calcanhar e, segundo Giovanni, dá mais firmeza para caminhar. O cajado também ajuda bastante.

Está prestes a entrar em cena o grande “vilão” dessa jornada: as bolhas tanto nos pés quanto nas mãos de quem usa cajado sem luvas.

“Aprendi que bolha tem que ser furada com agulha com linha porque é a linha que vai drenar a água. Há uma grande solidariedade pelo caminho para ajudar a curar as bolhas uns dos outros. Uma freira cuidou das minhas e eu furei 19 bolhas que afligiam uma tcheca. Além disso, estudantes de fisioterapia cuidam dos nossos pés, de forma voluntária, ao longo do trajeto”, conta.

Se a solidariedade ajuda, a beleza das diferentes paisagens pelo Caminho é um santo remédio que move a todos. Em Navarra, o verde dá o tom na imensa área rural salpicada por cabras e ovelhas; em Castela e Leon, os campos de trigo e girassol explodem a cor do sol. Na Galícia, a floresta cria uma grande área de sombra. Sebreiro é uma cidade originária da civilização celta, no alto de uma montanha (onde Paulo Coelho terminou sua caminhada). E na região de Rioja, as vinícolas construíram um engenhoso sistema de torneiras que deixa vinho e água à disposição dos peregrinos.

Muitos como Giovanni preferem caminhar sozinhos. Geralmente, a jornada começa um pouco antes do amanhecer. O plano é chegar no próximo albergue por volta das 13h. Depois de encarar a fila do banho, é hora de descansar. Mas só um pouco. Porque é no bar do vilarejo que os peregrinos se encontram. E bebem. E à noite, roncam. Muito.

Os albergues são uma atração à parte. Viloria de Rioja é um lugarejo com 28 habitantes. O albergue de lá se chama Refúgio, é comandado por Acácio, um brasileiro que foi amigo do escrito Paulo Coelho, na juventude. Giovanni conta que o local é um verdadeiro santuário em homenagem a ele é possível usar o quarto que o mago em pessoa utiliza quando faz o Caminho, ainda hoje. Aliás, Paulo Coelho é venerado em toda a região. Ele popularizou para os brasileiros o Caminho de Santiago ao lançar o livro “Diário de um Mago”, em 1987.

Em Carrión de los Condes, a atração é o albergue administrado por cinco freiras – quatro espanholas e uma alemã. Depois do jantar, elas tocam instrumentos e cantam. E convidam todos a cantar.

“Na minha segunda viagem, tomei coragem e cantei “Paz do Meu Amor”, de Luiz Vieira. Foi sensacional. Fui ovacionado. Ficar em albergues cuidados por freiras é maravilhoso. Todos vão para a cozinha e fazem panelões de comida. Os albergues de igrejas não cobram diária, mas aceitam donativos”, conta Giovanni que admite ficar muito ansioso quando a data da viagem se aproxima.

Seja qual for o albergue, a regra é sempre a mesma. Às 22h, as portas se fecham e as luzes são apagadas. No dia seguinte, todos têm que sair até as 8h para os voluntários iniciarem a limpeza. Neles costuma ter uma geladeira onde peregrinos deixam para trás o que não consumiram e qualquer um que chega pode se servir.

Segunda lição: o verbo que define o Caminho é compartilhar.

De repente, no meio do nada, ao virar uma curva, é possível se deparar com uma mesa repleta de comida e bebida. Não é miragem. É gratuito. Coma e beba o que quiser.

“Isso chega a chocar, mas depois, a gente entende. As pessoas da região são gratas aos peregrinos. Em algumas mesas, há um guardião muito mais para ajudar, para orientar do que para vigiar”, explica.

Giovanni conta que todo o caminho é bem sinalizado. A jornada costuma ser segura. Seu filho mais velho, de 22 anos, já fez a jornada, também sozinho. Na alta temporada, que começa agora em julho, o movimento aumenta bastante, mas é possível ficar horas sem ver alguém. Todos se “materializam” nos bares, mesmo.

Ele conta que o “saldo” da sua primeira experiência foi ter se tornado uma pessoa mais solidária. E se sente necessidade de voltar é porque acredita que seu aprendizado ainda não terminou:

“No Caminho, desconhecidos cuidam de você com muita atenção, com muito carinho. E você acaba retribuindo com outros desconhecidos. Nós estamos vivendo atualmente em uma selva, então, esse tipo de experiência é incrível. O grande desafio é ser a pessoa que você se torna no Caminho fora do Caminho”.

E agora, o spoiler. Quem pretende se tornar um peregrino não deve ler esse trecho!

SA: Qual foi sua emoção quando chegou em Compostela pela primeira vez?

GF: Foi a pior sensação da minha vida. Foi uma sensação de vazio. A grande emoção do caminho é fazer o caminho.

Caminhos de Santiago, verbete

Fotos: arquivo pessoal Giovanni Faria, Caminhada de 2016 Para comentar, aqui

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